top of page

O direito

ao grito

de

Socorro

Rafaela Garcêz

Maria do Socorro Nunes Leite, 66 anos. 

Este é uma reportagem sobre uma Macabéa que atende por Maria do Socorro. A distância entre a ficção do clássico de Clarice Lispector e a não ficção na capital do país é mais de cenários do que de vivências. Uma história de invisibilidade, esperança em meio a desamparos da vida.

confeitaria-mag-clarice-lispector-hora-d

“Assovio no vento escuro”

   “Tudo no mundo começou com um sim (...) Enquanto eu tiver perguntas e não houver respostas, continuarei a escrever”. Sábia é Clarice Lispector com sua hora da estrela, pelos caminhos de Macabéa, de Maceió para a cidade grande. Macabéas respondem por muitos nomes. Socorro não conhece Macabéa. Mas já conhece quando a vida diz não, mas ela adora mesmo assim. Em Maceió, lar de Macabéa, Maria do Socorro foi acompanhar a patroa. Hoje vive no Alagado da Suzana, onde há mais perguntas do que respostas. Esta é uma comunidade de mais de 40 anos que parece uma ficção e está a 40 km  do centro do poder, Brasília. E enquanto eu tiver perguntas, continuarei a escrever.

Ilustração Editora Rocco para capa do livro A Hora da Estrela

   Alagado da Suzana quase faz jus ao nome. Até o local, o percurso é de estrada “de chão”, mas feito mesmo de lama e persistência. Este caminho era percorrido por Socorro diariamente, ela levava uma hora de ida e uma hora de volta, a pé, até chegar ao trabalho. Em momentos de chuva o percurso piora, para chegar ou sair do local, é necessário ir bem devagar com o risco do carro ou mesmo do ônibus atolar. A visitei pela primeira vez em abril de 2019, logo quando as chuvas quase não deram descanso. À noite, a única luz que se pode ver são a dos raios, anunciando que mais água está por vir.

 

    Clarice diria: “Ela me acusa e o meio de me defender é escrever sobre ela”. E eu a entendo. Encontrar Macabea é a minha defesa. Eu a encontrei. Maria do Socorro Nunes Leite tem 66 anos. Aos 27, saiu de Alto Parnaíba, município no interior do Maranhão com população de quase 11 mil pessoas. Dez vezes menor do que o Gama, região administrativa no Distrito Federal.

A história de A Hora da Estrela 

“História

lacrimogênica

de cordel”

   Sem nada nas mãos, mas com o desejo de encontrar uma vida melhor, ela saiu do interior para a capital do estado do Maranhão. Foi tamanha a coragem que não sabia nem onde iria ficar ao chegar em São Luís. Porém, depois de ter tomado a decisão, não voltaria mais atrás.
 

   Por isso, viveu debaixo de uma árvore durante três dias até achar local para se estabelecer, já que ainda não tinha recebido nada do emprego que conseguiu na prefeitura local. Se você pensa que Socorro reclamou de frio ou calor, vai se surpreender. Para ela, foi um “aprendizado”, “Esse momento que passei debaixo da árvore foi e é muito bom, eu aprendi a viver né. Dar valor a vida”, falou. As semelhanças começam aqui. A vida pode seguir as palavras de Clarice.

“Ninguém olhava para ela na rua, ela era café frio” - A Hora da Estrela

   E só após alguns dias na rua por si só, as tias de Socorro, que moravam em São Luís, se reuniram e arranjaram uma casinha que seria paga aos poucos e a chamaram para ajudar.

   “Tempos depois”, as parentas foram embora, venderam a casa e não disseram nada a Socorro que já estava distante. Ao saber disso, ela entrou em contato com as tias para saber do proceder da venda do imóvel, mas ao atender o telefone uma das tias reconhece a voz da sobrinha e desliga o telefone sem pensar duas vezes. Nem a família lhe queria por perto ou lhe daria o que tinha por direito, mas ela não se deixou abalar por isso. “Deus já me deu muita coisa boa. Não tenho moradia mas tenho a minha vida”, relatou.

“O direito ao grito”

   Que o passado fique onde pertence. Maria do Socorro precisava de outro sustento e conseguiu emprego em uma casa no Maranhão como empregada e depois de um tempo, por indicação, veio parar na capital do país. Em 1980, ela aceitou o desafio de tentar a vida em um novo lar. Em Brasília, ela continuava como auxiliar doméstica, mas agora tinha mais oportunidades do que antes.
 

   Na prática, as coisas foram um pouco diferentes, ao embarcar em um novo desafio ela não imaginava que teria uma de suas maiores chateações. Chateação não é palavra que ela repita muito. Como Macabéa, ela não gosta de reclamar.
 

   Socorro é mulher sonhadora e pensava em conseguir a vida do lado do poder (Macabéa chamaria de luxo). O Distrito Federal se tornou o cenário que a permitiria conseguir seus objetivos. Ela que hoje é avó de duas crianças depositou a confiança na nova  “patroa” que prometia vida boa.
 

    Socorro interpretava muito além do papel de empregada doméstica e foi, por isso, que acompanhou a chefe até o estado de Alagoas (terra de Macabea). Só que nessa narrativa não tem ficção. Lá, ela diz ter sido friamente humilhada. “(A patroa) dizia que eu não tinha direito de nada. Que eu era apenas uma empregada, que ia me mandar embora pra minha terra de volta. Ai eu falei: ‘se for pra me mandar me manda, que eu estou disposta a ir agora, assim como eu vim eu volto’”. Mesmo com o restante da família com quem trabalhou insistindo para que Socorro ficasse, ela não poderia mais permanecer ali. “A gente já é pobre e ainda sendo humilhada, aí acaba de arruinar né? Eu nunca gostei que ninguém me humilhasse, por isso que eu larguei e dei um ponto final”, desabafou.

“Uma sensação de perda”

   Ao menos durante quatro anos de tempos difíceis em Maceió, ela pôde conhecer aquele que a ajudaria a constituir a tão sonhada família.


  Se em “A hora da Estrela”, de Clarice Lispector, Macabéa conheceu o amor de sua vida, Olímpio, e logo após o teve roubado por uma amiga, na vida real Socorro seguiu o caminho contrário.

 

   A maranhense que agora residia em Alagoas conheceu o futuro marido quando ele ainda namorava uma de suas amigas, mas até então eram somente colegas. Foi quando a amiga de Socorro mudou para Ponta Grossa no Paraná que ela resolveu dar uma chance para aquele que chamara sua atenção. 

 

  E em Maceió mesmo após encontrar o amor que nem ela mesma esperava, o sofrimento ainda continuava no ambiente de trabalho. Pois assim, a mulher determinada de sangue nordestino que nunca negou suas raízes, não aceitava desaforo nem precisava. Embarcou em um avião de volta para a Brasília e não se arrepende disso. Aliás, uma das raras lamentações foi ter deixado em Maceió o homem que seria o futuro pai de seus filhos.  

IMG_9603.jpg

Socorro e o neto

“Mas ela já o amava tanto que não sabia mais como se livrar dele, estava em desespero de amor” - A Hora da Estrela

   Por achar que amava tanto, depois de seis meses sozinha, Socorro pediu para que o amor dela também saísse de Maceió, disse que o queria perto. Ele que à primeira vista parecia compreendê-la como ninguém foi capaz de criar mais uma rachadura no coração da nordestina. Desiludida com o parceiro que a traiu, como Macabéa, Socorro não queria mais sofrer. No Alagado da alma, terminou o relacionamento e, por ter um coração tão bom, deixou que o ex parceiro morasse na mesma casa com ela e os filhos. “Eu me separei dele tem 23 anos. Ele mora aqui, mas não falo nada. Graças a Deus, não falo nada. Separei dele porque ele é mulherengo. É difícil de não ter homem mulherengo hoje em dia”,  lamentou.


   “Eu não sei nem responder o que é amor. Faz tanto tempo que a gente não sabe o que que é que até esquece”, contou Socorro, hoje o único amor que possui é a família, constituída de dois filhos uma mulher de 23 anos e um rapaz de 32.

   “Mas a sua voz era crua e tão desafinada como ela mesmo era.” Clarice escolhe a palavra crua para descrever Macabéa, Socorro também a escolhe para descrever a si mesma. “As pessoas que eu mais amo são meus filhos. Eu sou crua, nunca amei ninguém”, desabafa quando é questionada sobre os amores da vida.

“Ela que se arranje”

   Já em Brasília, ela encontrou oportunidades de trabalho como doméstica e nunca deixou de batalhar. Passou por diversas casas e coleciona experiências, hoje não pode mais fazer esforço físico, pois foi diagnosticada com reumatismo no braço. Ela espera pela consulta com um especialista na rede pública há mais de um ano. “Já passei coisa amargosa, doce, azeda, mas estou vivendo e adoro viver. Adoro minha vida como ela é”, respondeu Socorro, que não sabe o que é reclamar. “E acontece que não tinha consciência de si e não reclamava nada, até pensava que era feliz. Não se tratava de uma idiota mas tinha a felicidade pura dos idiotas”
 

   “Só então vestia-se de si mesma, passava o resto do dia representando com obediência o papel de ser”, entusiasmava-se Clarice sobre Macabéa. “Eu já trabalhei tanto na minha vida, parei agora porque não tô aguentando”, disse Macabéa da vida real. Devido às complicações de saúde Socorro depende dos filhos para sobreviver
 

   Mas mesmo com as dificuldades financeiras, problemas de saúde ela promete que o passado a ensinou. “E mesmo tristeza também era coisa de rico, era para quem podia pagar para quem não tinha o que fazer. Tristeza era luxo” afirmou Clarice Lispector e de fato Socorro vive essa realidade. “Eu não me esmoreço com qualquer coisa não. Às vezes a gente fica triste, mas eu não me chateio com essas coisas não, adoro a vida”, contou-me entre gargalhadas.

“Eu não posso fazer nada”

   Socorro hoje em dia vive em uma verdadeira corda bamba já que não possui a certeza de moradia. Ela morava de aluguel na região administrativa do Gama – DF e estava prestes a ser despejada quando foi socorrida por Gilberto Kopp, antigo dono do Clube Califórnia, localizado nas aproximações da comunidade do Alagado da Suzana, que a providenciou residência no local.


   Ao conseguir uma pequena casinha para Socorro, Gilberto questionou se ela tinha medo por se tratar de uma propriedade de uma instituição espírita, ela disse que não e que tudo que precisava era de um lugar para ficar. As divindades não lhe são estranhas, Socorro se considera católica, vive em ambiente espírita e visita igrejas evangélicas ela está onde lhe cabe. Mas ainda compartilha do mesmo sonho, a moradia própria.

“Lamento
de
um
blue”

   Todos os dias, no Alagado da Suzana, Socorro acorda de novo com dores no braço. Ela espera a aposentadoria há um ano e meio. “Ela não sabe gritar”? Sabe sim, Já procurou o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) que com suas respostas burocráticas não dá esperança para Socorro. “Dei entrada na aposentadoria em maio, aí mandou aguardar. A minha menina ligou lá e falou que está em análise. Que análise é essa?’’ indigna-se.
   Quem ajuda a manter a casa são os dois filhos, ela retribui como pode, neste caso cuidando dos netos. Bem que a nordestina não queria depender de ninguém, aliás, sempre foi dona de si, agora está impossibilitada e à mercê de uma decisão do órgão.

“A culpa é minha”

“Chorava, assoava o nariz sem saber mais por que chorava. Não chorava por causa da vida que levava: porque, não tendo conhecido outros modos de viver, aceitara que com ela era “assim”.”  - A Hora da Estrela

   É verdade que reclamar não é um ato usual na vida de Socorro, o que não retira a possibilidade de tristeza. “Eu fui pra igreja domingo e chorei tanto mas tanto. Estava lá mas ninguém percebeu que eu estava chorando. Eu tava numa emoção por dentro e eu não sei o porquê” contou a maranhense.

 

   “E achava bom ficar triste. Não desesperada, pois isso nunca ficara já que era tão modesta e simples, mas aquela coisa indefinível como se ela fosse romântica.” verdades sobre Macabéa que pairam também sobre Socorro e milhares que não possuem tempo para perceber o sofrer.

Maria do Socorro ao chegar na capital brasileira

“Quanto ao futuro”

   Socorro revela que ama as coisas pequenas da vida, entre elas ir ao cinema. “É bom demais, se eu pudesse todo dia estava no cinema”, esta é só mais uma semelhança entre Macabéa

“E tinha um luxo, além de uma vez por mês ir ao cinema: pintava de vermelho grosseiramente escarlate as unhas das mãos.” - A Hora da Estrela

   Diante de tudo que sofreu, as gargalhadas altas da maranhense ecoam por onde passa e ela conta que, se pudesse, estaria a viajar o Brasil. Quando questionada se faria viagens internacionais ela solta logo o “Eu não, não falo inglês”. Mas de resto, iria para diversos destinos. “Se me desse uma passagem pra qualquer lugar eu falava, vamos embora”, sorri.
 

   O espírito de Socorro é livre mesmo sendo privado por tanto tempo. Ela não tem medo de quase nada, muito menos andar de avião “Medo mesmo não tenho não, mas eu vim de lá até aqui chorando por causa dele”, relembra a história de amor que viveu e foi necessário ficar distante do namorado.
 

   Socorro não tem receio de aprender. Ela foi alfabetizada a partir do Programa DF Alfabetizado, em 2014, e se destacou como “aluna exemplar”. Ela quer ensinar outras pessoas. “Aprendo para ensinar”.
 

   Todas essas características tão singulares a transformam na mulher que não desiste e vê beleza na vida. Ainda que as oportunidades não lhe encontrem frequentemente ela aprendeu a ser forte o bastante a ponto de não desistir.

   Clarice Lispector disse que o “livro era um silêncio”, que a obra era “uma pergunta”. Um silêncio ensurdecedor. A reportagem é mais um grito, uma chance de resposta.  

**** Clarice Lispector explicitou que poderia ter escolhido outros títulos para a obra, incluindo “Direito ao Grito”, “A culpa é minha”, “Ela que se arranje”, “Quanto ao futuro”, “Lamento de um blue”, “Ela não sabe gritar”, “Uma sensação de perda”, “Uma sensação de perda”, “Assovio no vento escuro”, “Eu não posso fazer nada”, “Registro dos fatos antecedentes”, e “História lacrimogênica de cordel”. Esta reportagem é uma homenagem à escritora nascida em 1920 e que morreu em dezembro de 1977, às Macabéas e às Socorros do Brasil.  
bottom of page